Passado a limpo
Minha infância nunca
foi de roupinhas novas da hora, passeios no shopping com os amigos,
mesada, cabelos arrumados, esmalte e batom, objetos decorativos no
quarto, colcha do meu ídolo, barbies que dobravam os joelhos e os
cotovelos, refrigerante, lanche no recreio, almoço com todas as
verduras e legumes e um feijão fresquinho, sobremesas, leite com
cereal, minha cor preferida não era o cor-de-rosa...
Lembro que eu possuía
coisas simples...
Uma roupa que a irmã
mais velha usava e que já mal servia em mim, calças que nem tapavam
os tornozelos, casacos sem fecho, e as meias... Ah! Nem precisa
comentar!
Eu tinha umas bonecas
que minha madrinha mandava entregar nos dias comemorativos do ano,
usava livros velhos abertos e escorados em uma cadeira pra brincar de
secretária... Eu tinha uns discos de vinil bem velhos, um par de
sandálias da Xuxa que implorei muito pra ganhar, um par “rollers”
que era o meu sonho e que juntei umas moedinhas pra ajudar a pagar,
tinha um pão amanhecido, leite e café pra fazer “sopinha de pão”
(porque comer o pão muito velho somente mergulhado no café com
leite), tinha também dois quadros do Leonardo DiCaprio, umas
figurinhas das Spice Girls que vinham em uns pirulitos, tinha um
anel-apito, uma bicicleta velha azul que ganhei de um guri que não a
queria mais, um pirocóptero, não tinha lanche no recreio mas...
quem precisa de recreio quando se tem uma matéria que adora pra
copiar do quadro? Nem dava tempo de sentir fome! Eu tinha sapatos
rasgados, uma pastinha do camelô pra colocar os cadernos (muito bem
cuidados a propósito), alguns lápis tão gastos que mal dava pra
segurá-los... Ah! E uma caneta de quatro cores, imagine só! Tinha
cestas de páscoa todos os anos (minha irmã sempre as montava com
muito carinho), tinha dias de dormir na casa da amiga da casa ao
lado, tinha o dia de jogar bola na chuva, de brincar de
esconde-esconde... Um tanque pra tomar banho no verão...Tinha fitas velhas pra fazer gravações bizarras
com as amigas e depois colocar em modo lento pra deixar nossas vozes
como as de monstros retardados! Tinha os joelhos ralados cheios de
mercúrio pra “sarar”, cachorros e gatos... muitos, muitos e
muitos gatos! Eu também tinha mania de subir no portão e ficar me
embalando só pra ouvir o barulho “reng-reng-reng”... E eu tinha
chinelos com um prego segurando as tiras (e furando meu pé).
Tive mais algumas
coisas simples, coisas que geralmente não damos valor enquanto
estamos crescendo, mas basta começarmos a anotar cada item e cada
instante remoto da nossa infância pra vermos o quanto tínhamos
tanta preciosidade ao nosso redor. Coisas pequenas, coisas sem muito
valor material, mas muito importantes no nosso desenvolvimento como
seres humanos. Eu reclamava sim, não vou negar! Sentia necessidade
de ter o que uma outra criança tinha, de ter uma mochila grande, um
caderno de “capa dura”, mas isso não me deixou mais vulnerável,
isso não abalou meu caráter nem me levou a um psicólogo, muito
pelo contrário! Isso me tornou uma pessoa capaz de lutar pelo que se
quer, mas, principalmente, uma pessoa capaz de dar valor ao que se
tem.
Muitos lerão este
texto e, em certos momentos, lembrarão de alguns fatos ou objetos
como se estivessem assistindo a um filme antigo e muito marcante. Se
todas as lembranças forem anotadas uma a uma com minuciosidade como
em uma lista de compras, começariam a fazer parte de uma linda
vitrine que ficaria sempre exposta com luzes cintilantes dentro de
cada coração, despertando, desta forma, a gratidão adormecida por
tudo o que foi bom e por tudo o que parecia ser ruim!
Depois disso, que tal
pegar um lápis, um papel e rebobinar a fita?